"[A classe operária britânica foi definida] economicamente pela Reforma da Lei dos Pobres de 1834, que a excluía do direito à assistência e a distinguia da massa dos indigentes", escrevia Karl Polanyi n'A Grande Transformação, publicada em 1944. Distinguir o trabalhador do "pobre" não é uma operação neutra e desempenhou um importante papel na afirmação do capitalismo enquanto modelo de organização económica, social e política. Definir a fronteira entre quem é, ou não, pobre é uma ação política que ultrapassa as definições econométricas do que constitui, ou não, uma situação de pobreza.
Para quem prega a selvajaria do mercado, mascarar a perversidade em que esta "liberdade" se traduz é necessário. Esta tarefa é tão mais necessária quantos mais trabalhadores se encontram em situações de objetiva escassez. Quando o trabalho não garante a provisão material necessária, não só à sobrevivência, mas a um determinado nível de bem-estar que é legítimo esperar e reivindicar, torna-se necessário neutralizar a imagem do "pobre", sob a ameaça de esta se estender e passar a representar a imagem do "trabalhador comum".
A marcha coorganizada pela Câmara Municipal de Lisboa, no âmbito da Jornada Internacional pela Erradicação da Pobreza, constitui parte desta tarefa necessária à preservação de um sistema assente na exploração de uns para o enriquecimento de outros. Com isto não afirmo que seja intenção geral das entidades organizadoras contribuir para esta operação. Acredito verdadeiramente na boa intenção de grande parte dos organizadores. Porém, independentemente dessa intenção, este tipo de evento adere consciente ou inconscientemente a uma determinada visão da pobreza e integra, na prática, uma disputa política. Veja-se a contestação por parte de algumas juntas de freguesia, recusando-se a participar de tal evento, tendo em conta as consequências para os próprios sujeitos expostos na marcha (estigmatizados), mas também o desacordo em relação ao que deveria ser o combate à pobreza e, consequentemente, o que é a pobreza que queremos combater.
Esta não é a primeira vez que a marcha é organizada; conta já com 20 anos. Porque se tornou então alvo de polémica agora? Porque, tal como no início dos inícios retratado por Polanyi, encontramo-nos num momento em que a imagem do "pobre" volta a ganhar importância política perante a pauperização da maioria das pessoas que vive do seu salário. Para evitar questionar os pressupostos do sistema económico, é necessário despolitizar a pobreza, neutralizá-la, o que implica agir em três eixos. Em primeiro lugar, implica representar a pobreza enquanto problema técnico e não político, remetendo-o, por exemplo, para categorias estatísticas vazias de contexto social. Esta "tecnocracia" não é estranha ao executivo de Moedas, basta lembrar quando interrompeu Ana Jara, da CDU, acusando-a de politizar uma reunião de câmara. Em segundo lugar, envolve representar os "pobres" como um grupo de pessoas ao qual a maioria não pertencerá, são "outros", uma amálgama de gente aparentemente distante que partilha uma condição passiva de "excluído". Por fim, para evitar o risco de se parecer socialmente insensível, importa colmatar essa distância com uma missão filantrópica que distingue quem a ela se dedica – a "caridadezinha", expiadora de pecados, uma boa vontade cuja politização seria ultrajante. Repare-se na reação de Laurinda Alves aos críticos da marcha e ao seu cancelamento: "vergonhoso aproveitamento político sobre um tema que a todos nos devia unir". O combate à pobreza nos moldes da "caridade" é incapaz de garantir o chão firme em que alguém se pode suster. As primeiras testemunhas desta incapacidade são, aliás, para além dos próprios sujeitos destas políticas, aquelas (claro que na sua maioria mulheres) que se dedicam no terreno a evitar a asfixia de muitos.
Mas quem são estes "pobres"? A própria convocatória da marcha responde a esta pergunta ao definir os "marchantes": "pessoas em situação de vulnerabilidade social, acompanhadas nos projectos dinamizados"1 – são, portanto, aqueles que as próprias instituições já definiram ao fixar os beneficiários desses mesmos projetos – os "vulneráveis", os "excluídos" cujos contextos concretos raramente são nomeados. O vazio destas palavras não é inocente. Note-se as declarações do Presidente da Junta de Santa Maria Maior à TSF, contra a mobilização para a marcha: "As estruturas do estado fazerem manifestações, ao fim ao cabo, contra si próprias. Se se quer combater a pobreza, tomem-se medidas consequentes." Este tipo de evento, esta conceção de pobreza e a exposição dos "pobres" no evento não constituem qualquer ameaça ao status quo porque são inconsequentes, não expõem, nem propõem atacar as raízes estruturais do problema, as formas de produção de desigualdades sociais de que a pobreza é expressão.
a despolitização da pobreza é o primeiro passo para políticas à la Troika
Apesar de a CML, sob o comando do PS, já ter participado e divulgado este evento, a marcha, caminhada – o que lhe queiramos chamar – toma outros contornos sob uma coligação de direita. Primeiro, porque reproduz uma visão de política social que torna passivos os seus sujeitos – que, aliás, têm de se fazer acompanhar por um representante da junta de freguesia na caminhada2; depois porque há já um histórico de estigmatização da pobreza por parte da vereadora Laurinda Alves, quando, por exemplo, resolveu não oferecer bilhetes para o Rock in Rio a pessoas em situação de sem-abrigo pelo perigo (por si percecionado) de incentivar consumos arriscados. Por último, a despolitização da pobreza é o primeiro passo para políticas à la Troika - a destruição de garantias coletivas de bem-estar, um Estado social verdadeiramente universal, reforçando o remeter dos "pobres" à ação social intermediada pelo terceiro setor, a estigmatização dos beneficiários de prestações sociais, atacando essas prestações em benefício de apoio em géneros, semeando a desconfiança na sua capacidade de gerir o seu próprio rendimento, entre outros exemplos.
A disputa da ideia de pobreza é uma disputa política cuja importância cresce com a aproximação de cenários de crise, porque é nela que reside o "acordo sobre a necessidade de satisfação de x necessidades, ou de bem-estar"3. Fazer esta disputa implica perturbar este acordo, expandi-lo, torná-lo exigente. No fundo, correndo o risco de uma conclusão panfletária, implica sermos realistas - exigir o impossível.
Notas:
1 Laurinda Alves, vereadora dos Direitos Humanos e Sociais, da CML, citada pelo Público: https://www.publico.pt/2022/10/11/local/noticia/camara-lisboa-vulneraveis-piquenique-marcha-2023639(link is external)
2 https://www.publico.pt/2022/10/11/local/noticia/camara-lisboa-vulneraveis-piquenique-marcha-2023639(link is external)
3 Ágoas, F., & Neves, J. (2016). Para uma história da pobreza em Portugal. In F. Ágoas & J. Neves (Eds.), O Espectro da Pobreza: História, Cultura e Política em Portugal no Século XX. Editora Mundos Sociais.