Análise espectral da indiferença - Café da Praça Central

Últimas

Café da Praça Central

Ecos da Actualidade...

22 maio, 2025

Análise espectral da indiferença

"Íamos, com efeito, mudando mais frequentemente de país do que de sapatos, através das lutas de classes, desesperados, quando havia só injustiça e nenhuma indignação…"
Extracto de "Aos que virão depois de nós", Bertolt Brecht (Tradução de Manuel Bandeira), 1939
A contracção do espaço público, entendida como a redução ou deterioração de áreas destinadas ao uso colectivo, seja por meio de políticas de controle, privatização, degradação física, ou mudanças nos padrões de uso, deixa antever resultados pouco recomendáveis. A segregação social, a insegurança, a criminalização da pobreza, a homogeneização cultural e a perda de identidade, são alguns dos efeitos que, aliados a uma quebra de vitalidade cultural, produzem e reproduzem a indiferença, no uso e fruição da Cidadania. Habermas analisaria, em 1962, na sua obra "A Transformação Estrutural da Esfera Pública", o declínio da esfera pública burguesa e as suas implicações para a democracia, entendida como função deliberativa.
O culto da indiferença está hoje bem patente na percentagem de eleitores que usam o direito de voto. O clima de medo instalado na Europa produz a indiferença generalizada perante a carência e a multiplicação de casos de hostilidade e discriminação. Existe hoje um desencanto, um descontentamento evidente pelas políticas desenvolvidas que, aliado a uma deficiente politização dos cidadãos, induz uma indiferença generalizada e traduz, em termos eleitorais, elevados número da abstenção. Tal acontece em Portugal desde 1975, onde a percentagem foi de 8,5%, até ao último acto eleitoral, onde esse número atingiu os 40,2%, passando por anos como o de 2019, onde o número de abstencionistas subiu para 51,43%. E o exemplo das eleições europeias de 2024, onde o valor percentual da abstenção subiu a 64%. Mas a indiferença ultrapassa o acto eleitoral, apenas o momento em que o cidadão é "convidado" a manifestar a sua vontade. A indiferença alastra a todos os níveis de uma sociedade de paz podre, marcada pela injustiça, opressão e totalitarismo, que geram a indiferença em vez da revolta necessária. Da mesma forma que o poema de Brecht, que na época fugia do nazismo e se dirigia às gerações futuras com um pedido de compreensão e um sinal para os tempos sombrios, transmite hoje a angústia diante da brutalidade capitalista a que se assiste com passividade colectiva. O poema é pois um convite à acção, um alerta para que as gerações futuras não repitam os erros do passado.
Utilizamos a asserção "Análise espectral da indiferença" para, em termos de metáfora, dissecar a apatia, o desinteresse e a desconexão dos eleitores em processos democráticos. A análise espectral é uma ferramenta essencial para extrair informações críticas de dados complexos, aplicável em diversas áreas do conhecimento. Esta tipologia de análise, muito comum na ciências experimentais, pode aplicar-se aos movimentos sociais, como metodologia para decompor um sinal ou conjunto de dados nas suas componentes de frequência, permitindo identificar padrões, periodicidades e características que não são evidentes no domínio do tempo. Assim, neste contexto eleitoral, a indiferença pode ser examinada como fenómeno multifacetado, cujas "frequências", os factores sociais, políticos e culturais compõem um espectro complexo. A desconfiança estrutural (baixa frequência) e os medos pontuais (alta frequência) exigem respostas diferenciadas, desde políticas de transparência até campanhas de educação cívica. Para fazer um diagnóstico preciso, deveriam combinar-se meios tradicionais com meios que a ciência moderna oferece, por exemplo, sondagens credenciadas, no primeiro caso e meios de detecção de desinformação, aproveitando a inteligência artificial, no segundo.
Identificando as frequências da indiferença, encontramos a fadiga eleitoral e abstenção, a desinformação e polarização, a desconfiança nas elites políticas e a falta de identificação ideológica. A percepção de que o voto em partidos pequenos tem menos impacto desincentiva a participação, especialmente em círculos eleitorais menores, onde o número de deputados é reduzido, facto que reforça a sensação de que o sistema eleitoral não reflecte plenamente a diversidade de opiniões, induzindo mais indiferença.
Autores clássicos, ainda sem os instrumentos necessários, como Marx, Durkheim ou Max Weber desenvolveram teorias e estudos concretos que podem ser analisados hoje com o auxílio da análise espectral. Autores mais recentes, como o sociólogo e filósofo polaco Zygmunt Bauman, autor do conceito "modernidade líquida", ao descrever a fluidez e instabilidade das relações sociais na pós-modernidade, contribuiu para aperfeiçoar os ciclos de instabilidade social, e da indiferença, como fenómeno particular.
Se o futuro das sociedades ocidentais estiver algures entre a apatia e a ansiedade, estará criado eventualmente um paradoxo, produzido pela interacção entre indiferença e medo. O que é um facto, é que enquanto muitos eleitores se afastam do processo político por desilusão, outros são mobilizados por narrativas que exploram inseguranças. E ambos os fenómenos corroem a participação cívica consciente, essencial para uma democracia saudável. A indiferença reduz a exigência sobre os partidos, permitindo que as campanhas, como facilmente se vê, se limitem a promessas vagas ou ataques mútuos, um espectáculo por vezes deprimente e acéfalo. O medo, por sua vez, favorece o voto reactivo, que prioriza o simples protesto em detrimento de projectos de longo prazo e da mudança radical necessária. Para reverter este ciclo, se tal for possível ainda, é necessário promover uma cultura de participação activa, com iniciativas como sistemas de resposta rápida contra a desinformação e o aumento da literacia política. As campanhas de dinamização cultural dos tempos da Revolução seriam decerto um excelente auxiliar. Uma campanha em massa nas redes sociais para contrabalançar o "poder" da extrema-direita será uma forma de combater a indiferença. E o medo, principal combustível do populismo.
No contexto destas eleições, a indiferença manifesta-se na abstenção e no "cinismo funcional" dos eleitores, que, na perspectiva da Direita, pagam contas, toleram elites e sonham com mudanças que não impliquem rupturas reais. A este propósito veja-se o que escrevia em 2019 o jornalista e sociólogo polaco Sławomir Sierakowski, que é o líder do movimento de intelectuais, artistas e activistas de esquerda Krytyka Polityczna: "…abandonadas pela democracia, as maiorias seguem exemplo dos políticos, renunciam ao futuro e votam segundo interesses cada vez mais mesquinhos e oportunistas". E diz mais, "…todos nós nos comportamos como egoístas esclarecidos. Embora saibamos lutar contra as desigualdades, elas estão aumentando. O autoritarismo (…) lida melhor com a pobreza do que a democracia. As sociedades ricas são pouco sensíveis a guerras ou crises de refugiados." Hoje em dia, em particular nas eleições do próximo 18 de Maio, em que o cidadão se sente mais utente do que agente, o voto está transformado num acto puramente mecânico.
Voltando a Brecht, inspirador da insubmissão e da revolta, poderemos talvez aprender mais um pouco e, pelo menos, encontrar na educação dos vindouros as respostas que não encontramos em nós: "Vós, que surgireis das marés / Em que nos afogamos, / Pensai, quando falardes das nossas fraquezas, / Também nos tempos sombrios / Em que vivemos."
Resistindo à indiferença, recusando o medo.