Não reconheço, nem permito à extrema direita (a quem a direita tradicional se associou) a mínima autoridade para falar sobre liberdade e emancipação das mulheres.
Onde estavam eles:
⸺ Quando o governo de Mário Soares impôs, perante gritos conservadores, a Lei da Educação Sexual e Planeamento, em 1984, e, mais tarde, o governo de António Guterres, em 1999, garantiu a existência obrigatória da educação sexual nos currículos das escolas públicas?
⸺ Quando a licença de amamentação foi garantida às mães e filhos, também em 1984, e quando ela foi aumentada e protegida, também pelo governo de António Guterres em 1999?
⸺ Quando se garantiu a existência de consultas de Planeamento Familiar, com distribuição de métodos contracetivos gratuitos, no SNS, ou quando se garantiu a contraceção de emergência, para evitar gravidezes em caso de abuso e de violação, em 2001?
⸺ Quando se conseguiu criar a licença de maternidade, em 1985, com um governo de Mário Soares, e quando se foi aumentando o período de licença e impondo a partilha com os pais, fixando-se pela primeira vez, uma licença obrigatória para os pais, em 1999, com o governo de António Guterres?
⸺ Quando foram colocados, pela primeira vez, mediadores culturais nas escolas, para integração de estudantes de outros países e de outras culturas, em 1998, com aprovação formal do Estatuto em 2001?
⸺ Quando foi executada a Rede Nacional de Casas de Abrigo para Vítimas de Violência Doméstica, em 1999?
⸺ Quando se aprovou a Lei da Paridade de 2006, que impôs quotas de 33% que as protegem?
⸺ Quando se lutou pela despenalização das mulheres que eram forçadas a fazer abortos clandestinos, em 1998, e, depois, em 2007?
⸺ Quando se colocou fim ao divórcio com prova de culpa pelo cônjuge que pretende colocar fim ao casamento, em 2008?
⸺ Quando se aprovou a Lei da Paridade de 2017, que impôs quotas de 33% nas empresas cotadas em bolsa e universidades?
⸺ Quando se criou o Estatuto do Cuidador Informal, em 2019, que protege mulheres que se dedicam a cuidar de pais e filhos, muitas vezes doentes ou com deficiências?
⸺ Quando se garantiram as creches gratuitas, em 2022?
Foi sempre a Esquerda Democrática e Humanista quem lutou pela dignificação e emancipação das mulheres. Seja contra o jugo familiar, religioso ou social.
As práticas de imposição de vestuário (burqas, niqabs, chador ou hijab) em contextos de ditaduras teocráticas – como sucede em vários países árabes, em países muçulmanos ou asiáticos – são um sinónimo de subjugação e de coisificação das mulheres que deve ser ferozmente combatido. Pela educação, pelo exemplo, pela construção de condições que permitam emancipar essas mulheres e, quando necessário, pela lei.
Em Portugal, esse problema não se coloca. A Constituição e a lei garantem a todas/os a liberdade de autodeterminação quanto ao que se veste, a liberdade de expressão através do vestuário e do modo como nos apresentamos em público e a liberdade religiosa. O Código Penal pune como crime de coação se um clérigo ou um membro de determinada comunidade forçar uma mulher a envergar uma roupa que lhe cubra o rosto. E pune como crime de violência doméstica o cônjuge ou outro familiar que lhe imponha o burqa ou o niqab.
Mas qualquer mulher muçulmana – independemente da sua etnia ou cor de pele – pode envergar a roupa que bem lhe apetecer. E honrar as suas raízes, as suas tradições e a sua cultura ancestral. Desde que seja livre para o decidir.
Qual é o problema, então?
O Chega não gostou do resultado das Eleições Autárquicas. E decidiu encontrar um pretexto para distração. Foi ao baú bafiento de quem só vive de um passado que nunca existiu buscar uma polémica que só fez sentido, há 20 anos, em países como França, Bélgica, Holanda e Suíça, onde grande parte da população imigrante é muçulmana.
Segundo os recentes dados do Relatório de Migrações e Asilo de 2024, os cinco países que contribuem com mais imigrantes são todos de população maioritamente cristã: Brasil (38.713), Angola (33.826), Cabo Verde (15.012), São Tomé e Príncipe (11.858) e Guiné Bissau (11.639). O sexto é a Índia, de maioria hindu, com apenas 11.221 imigrantes. Só em sétimo e oitavo surgem dois países muçulmanos em que o burqa nem sequer é usualmente envergado: Bangladesh (10.848) e Paquistão (7.183).
Veem-se mais tatuagens com a cruz suástica nazi, com o ignominioso "1143" ou com outros apelos a regimes violentos e autoritários do que hijabs. Veem-se cabeças rapadas e caras tapadas para esconder as ameaças ao regime democrático. Veem-se perfis em redes sociais a apelar à violência, à morte de pessoas racializadas e de adversários políticos, bem como à tomada de armas para instaurar um regime autoritário. Veem-se polícias e militares a participar, alegremente e à vista de todos, desses grupos. Porque é que não se lembraram de proibir isso? Encontravam, decerto, mais infrações e ajudavam a arrecadar coimas suficientes para compensar as receitas das contribuições pagas por imigrantes.
A lei – à qual o (autoapelidado) moderado PSD deu a mão – promove apenas o segregacionismo, a exposição pública das muçulmanas ao ódio e a islamofobia legitimada pelo Estado. É uma "Licença para Agredir".
Quem não anda a dormir sabe bem o que já se passa nas nossas ruas. Pessoas ressentidas e pouco apegadas ao respeito democrático pelos outros, acicatadas e confortadas pela extrema direita que diz tudo o que nunca esperámos ouvir, insultam e agridem quem se apresenta em público de forma diferente daquela que gente alucinada acha ser o "padrão aceitável". Fui só eu quem já ouviu, em cafés, em filas de supermercados ou gritado de um carro em andamento humilhações gratuitas e insultos que ferem brasileiras/os, africanos, muçulmanos, hindus ou asiáticos? Nas ruas da(s) cidade(s) que amo.
Não, não há um problema.
Por muito que o Senhor dos Passos nos venha catequizar, por dor de cotovelo de ter sido apeado do poder, não temos um problema com os estrangeiros que vêm para o nosso país ajudar-nos a fazê-lo mais próspero, mais justo e mais diverso.
Temos um problema é com quem nunca mexeu uma palha para lutar contra a opressão das mulheres nessas ditaduras teocráticas e que, hipocritamente, foi e continua a ser financiado por esses ditadores para espalhar o caos nos países democráticos. Temos é um problema com quem violenta as mulheres, Deputadas suas adversárias políticas, todos os dias, no Parlamento, à vista de todas/os. Temos é um problema com quem dá estes exemplos de barbárie e de desrepeito pelos outros a crianças e jovens que estão a crescer, perante a passividade dos democratas, com a sensação de que, afinal, vale tudo: gritar, insultar, agredir e... um dia... até torturar, prender e matar.
Cubram a cara.
De vergonha.