"Mas nada me tira mais do sério do que “as portuguesas e os portugueses" - Café da Praça Central

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23 outubro, 2025

"Mas nada me tira mais do sério do que “as portuguesas e os portugueses"



"Por favor ponham travão aos absurdos que andam por aí, como fagulha em trigo seco, a espalhar homicídios da língua materna

Sim, venho pedir, por favor, por todas as alminhas, pelo que há de mais sagrado, que parem. Ponham travão aos absurdos que andam por aí, como fagulha em trigo seco, a espalhar homicídios da língua materna. Não perceberei nunca porque é tão custoso que os bons exemplos encontrem seguidores, enquanto os maus logo atinjam o dobro e rapidamente se multipliquem por mil. De vez em quando, muito de vez em quando, surgem no espaço público vozes de excelência no linguajar. Da dicção à escolha da palavra, do arrumar da frase à profusão de clarezas várias. Pois que falam para o vazio, pelo que ouço. Fico de mão em concha atrás da orelha, na esperança vã de que aquele português correcto deixe semente imediata e no dia seguinte toda a gente comunique no máximo potencial da nossa gramática rica.

Semente coisa nenhuma. Mas bastou, se bem se recordam, que uma interveniente do primeiríssimo "Big Brother" começasse tudo o que se preparava para dizer com a expressão "Então é assim..." para que no dia seguinte, e nas semanas subsequentes, e nos meses posteriores, e por anos infindos até hoje, a populaça lhe seguisse o trejeito. E todo o país falava à "Big Brother".

Hoje há, como se não bastasse, fontes infindas de gasolina para esta fogueira, com a aditiva internet à cabeça, onde se acotovelam os vídeos de jovens que para tentarem explicar seja o que for, do simples ao pretensamente elaborado, repetem duas mil vezes "tipo", "mano", "puto", que já de si são traduções rápidas dos tiques de outra língua, mas ainda acrescentam, sempre, a prova viva de uma aculturação consumada, com expressões corriqueiras de inglês em número igual ou tantas vezes superior ao português, os "bitch, pleaaaase", os "what the fuck?", os "really?", os "awesome".

Nas mensagens escritas há necessidade de pessoas mais velhas tirarem cursos rápidos para entenderem a chuva ininterrupta de abreviaturas.

É difícil encontrar quem escreva palavras inteiras nas mensagens, muito menos quem perca tempo com pontuação. Dizem que é da pressa, que estamos sempre cheios de pressa, provavelmente toda a população está a tratar de assuntos urgentíssimos a todo o minuto. É o que é. Não há aqui qualquer verdadeiro problema. A língua e a expressão "evoluem"... Que cada um entenda e se faça entender na esfera privada é tão pessoal e sagrado e livre como as opções sexuais. 

Mas há um outro patamar do uso da linguagem que tem diferentes, e mais exigentes, responsabilidades. E a esses venho pedir um esforço comum. Por favor, excelentíssimos da política, digníssimos comentadores de todas as horas, de todos os dias, na TV e na rádio, caros colegas jornalistas. Parem de dizer: "As portuguesas e os portugueses..." Parem de repetir "nomeadamente" a cada parágrafo. Parem de sublinhar constantemente com "digamos assim" ou "por assim dizer" toda e qualquer ideia ou palavra que não o peça, por ser factual, objectiva ou, como todos preferem hoje, literal.

Aprendei ou recordai com urgência quando e porque utilizamos metáforas ou figuras de estilo. Não sei o que se passa ao certo nas outras línguas (tenho a mágoa de não saber falar com desenvoltura mais do que o inglês, com excepção de um tímido francês e um italiano cheio de tropeções). Sei que, na espessura bonita da nossa língua, tudo tem um propósito que um dia foi estudado, aprovado, transposto para Gramática oficial. Um livro de regras, sim, uma Constituição que se ergue acima de todas as dúvidas. E se eu escrevesse "uma Constituição, por assim dizer", aqui, sim, a expressão sentir-se-ia bem, adequada, utilizada no propósito para que foi criada.

A consequência mais gravosa destes tiques de linguagem que gente com currículo e pergaminho também anda a apanhar, como um vírus (digamos assim), é que se verifica, com rapidez indesejada, que o vírus se espalha por todas as classes e profissões e até idades. Acaso julgais que exagero? Passai a apontar, desafio-vos. Assinalai com um tracinho num papel cada vez que escutardes, sentados em frente à TV, um "nomeadamente", um "por assim dizer", um "digamos assim". Mas nada me tira mais do sério do que "as portuguesas e os portugueses", porque nascerá, aposto, de um outro vírus, o dos novos marketings espertinhos: a tentativa de sedução através do politicamente correcto.

Quando ouço figuras da responsabilidade de Marcelo Rebelo de Sousa, Luís Montenegro, José Luís Carneiro, Carlos Moedas, só para citar alguns, os mais insistentes, só posso concluir que é expressão que foram aconselhados a utilizar, com a justificativa, tão pequena quanto vulgar, tão paternalista quanto patriarcal, de que é assim que se pisca o olho às mulheres. Deveria ser escusado relembrar que o nosso plural neutro se diz e escreve no masculino, muito embora não seja regra rígida em todas as línguas de raiz latina. O mais curioso é que acertar ao lado na baliza da linguagem dita inclusiva está previsto há muito tempo. Basta ver o filme dos Monty Python "Life of Brian". Por essa cena e muitas mais."

 Rodrigo Guedes de Carvalho