A burka é um não assunto, mas óptima para tapar a realidade. A definição da agenda pela extrema direita (e não pelo jornalismo crítico e independente) é uma burka entre nós e a verdade - se não vejamos, esta semana temos a proposta ignóbil de António Costa, que faz eco da proposta do Almirante Gouveia e Melo, de deixar de haver sufrágio universal directo na eleição do Presidente da República. Nada menos do que - não há voto popular.
Outro assunto para a burka tapar - o pacote laboral que permite, por exemplo, fechar uma empresa de limpeza ou segurança, despedir os trabalhadores todos e a seguir, no dia seguinte, abrir outra empresa e contratá-los por metade do preço, não conta sequer a antiguidade.
Outro assunto, e que assunto, a contratação pública, que destrói as pequenas empresas e permite crimes como o que matou 16 pessoas no elevador da Glória. A propósito disto este artigo brilhante do economista Adriano Zilhão no Jornal Maio esclarece muito - porque a luta contra a corrupção é uma bandeira do Partido fascista Chega. E esclarecer -não tapar - é a função do jornalismo. Link para o artigo completo no primeiro comentário.
"Perguntam muitos, a propósito da corrupção, da UE, da concorrência, da transparência e dos grandes negócios:"Mas a contratação pública na UE não é regida por directivas europeias que visam garantir transparência, concorrência e boa gestão dos recursos públicos? Pelo menos em teoria?"
É uma pergunta com muita pertinência e grande alcance.
Justifica uma reflexão particular, porque ela tem muito, muito que ver com alguns dos temas políticos e sociais mais actuais: corrupção/transparência, UE, "classes médias", ascensão da extrema-direita.
(...) com as regras pormenorizadas dos concursos públicos na UE e nos Estados, houve, à cabeça, este efeito: passou a ser mais difícil decidir da atribuição de concursos de grande e média monta através de negócios de bastidores, por ajustes e acordos corruptos entre "pessoas".
Ora, este método de negócio foi, durante muitas décadas, um dos lubrificantes de eleição das economias capitalistas: a alemã, a inglesa, a francesa, a espanhola, a italiana, a portuguesa, a americana.
A obtenção de contratos públicos é, frequentemente, vital para o negócio das empresas. Na linguagem do patronato e dos seus representantes políticos, dela "dependem muitos postos de trabalho".
Dela diremos nós: dependem, sobretudo (para pessoal de temperamento mais moderado: dependem, também), muitos lucros.
Qualquer empresa racional — portanto, determinada a sobreviver — determina o seu comportamento por relações custo/risco/benefício: quanto ganho com este concurso? Quanto me arrisco a perder se fizer batota?
E, consequentemente: se o risco associado à batota for alto, quanto custa arranjar advogados, consultores, que me ajudem a encontrar a maneira de ganhar "segundo as regras"? Compensará?
No capitalismo sempre foi assim, não há por aqui diferença particular. O problema da corrupção não reside nas "regras". Reside no sistema. A luta é pela sobrevivência na selva, que tem o nome comercial de "concorrência livre e sem entraves", que é, em cinco palavras — cada uma delas, uma mentira (ressalvem-se as preposições, coitadas) —, a Constituição da UE.
As regras, em capitalismo, são como tudo, até a vida humana: têm um preço; determina-o o mercado.
Qual é a principal diferença, então, em relação a "antes"?
Antes, quando a construção de uma boa relação pessoal, untada com umas notas passadas discretamente, umas valentes almoçaradas e uns convites para o bordel de luxo permitia ganhar uma adjudicação —, um pequeno ou médio empresário astuto conseguia lá ir, pelo menos de vez em quando.
As novas regras, porém, tornam muito mais difícil esta corrupção em pequena escala.
Agora só lá se vai com grossas equipas de lobistas, com a frequência de decisores políticos importantes; com empregar (caros!) advogados e relações públicas polidos, bem falantes, capazes de dissertar sobre o interesse nacional, a situação e as perspectivas mundiais; com arranjar jactos privados para dar boleias; e dá jeito fazer uma ou outra obra de caridade bem vista (fundações disto e daquilo).
Uma vez isto feito, os concursos, mesmos os mais públicos e anónimos, resolvem-se: manejam-se as especificações para favorecer a nossa empresa; põem-se cláusulas que, partindo de um preço-base baixo, permitem triplicar ou quadruplicar o valor durante a empreitada; ou situam-se os limiares de adjudicação em valores demasiado baixos (e, uma vez o concurso deserto, passa-se à fase seguinte, até chegar à adjudicação directa); e mil e uma outras maneiras de manipular concursos.
No pior dos casos, impugna-se o concurso, atrasa-se tudo, até o concurso falhar e se ter de fazer outro.
Lateralmente seja dito: está aqui grande parte da explicação de porque as médias e grandes obras públicas nunca mais acabam, nunca mais se fazem, são demasiado caras. Tudo são custos, advogados, lobistas, diligências; e onde hão-de acabar todos os custos senão no preço da empreitada?
Mais: o jeitão que isto dá para bramar contra a burocracia: "nada se faz", "andamos a pagar impostos altíssimos para isto?"; "desburocratize-se!", "simplifique-se!"; "simplex!"; o miserável portinglês do Cotrim!
Atenção: que a "transparência" tem os seus limites. Nada há de mais sagrado, nada haverá de mais sagrado do que o segredo comercial!
Caso contrário, não vêm lá os chineses roubar as nossas patentes, roubar os nossos saberes, roubar os nossos "postos de trabalho"? Que político quer tal labéu?!
A corrupção, nos países da UE, com as complexas regras da contratação pública, passou a só ser lucrativa em grande escala.
Na livre concorrência, sem entraves, pela corrupção, já só podem participar grandes empresas, grandes capitais. (Não se duvide: no campeonato mundial da corrupção, a primeira liga não inclui nem o Congo, nem Angola, nem a Bolívia, nem a Índia — é encabeçada pelos EUA, seguindo-se, como é habitual, as Alemanhas, Franças eAraganças).
Isto, sem qualquer ironia, é um problema muito grave.
A pequena e, sobretudo, a média empresa sempre viveu muito (não só, mas bastante) da pequena e média corrupção. Relações, cunhas, palmadas nas costas, almoçaradas.
Uma vez esta pequena corrupção erradicada ou quase, o pequeno e médio empresário não tem remédio senão tornar-se, em tudo menos no nome, assalariado do grande capital: franchiser, fornecedor de um cliente único, agente/traficante de mão de obra barata.
Isso torna-o cada vez mais raivoso.
Raivoso contra o sistema.
Raivoso contra os grandes, que lhe tiraram quaisquer hipóteses de singrar pelo seu suor.
Raivoso contra os pequenos, os seus próprios trabalhadores, que querem salários, direitos, regalias, e não fazem ideia de como é "o mundo real".
Raivoso contra tudo e contra todos.
E isso traz-nos de volta à ascensão dos Chegas deste mundo.
(...)
O grande capital organiza a corrupção em grande escala, a miséria em grande escala, a guerra em grande escala.
Os pequenos tramam-se. Se o movimento operário é fraco, os "pequenos", inconformados, que se achavam grandes e falharam, viram-se contra os trabalhadores, os que "não querem trabalhar", os sindicatos, o movimento operário: são muito mais fáceis de culpar.
Esta é a história do fascismo. "
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Raquel Varela