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A vírgula. Esse sinal de pontuação que tantas vezes me irrita por não saber em que parte da frase o deva colocar. Que me faz ler e reler textos para ter a certeza que está demarcada no local certo. A vírgula é indecisa. Não é como um ponto final, que marca com exatidão o final de uma afirmação sem ninguém questionar a sua autoridade. A vírgula posiciona-se numa qualquer fracção de uma frase e quase passa despercebida. E depois também temos o ponto e vírgula; não fossem os restantes sinais de pontuação revelar-se insuficientes para percepcionar o verdadeiro sentido do texto. O ponto e vírgula não é ponto, nem é vírgula. É um meio termo. Ordena-nos uma pausa mais acentuada. Não diz que a frase acabou. Faz-nos antes notar que devemos ir com calma e respirar, porque ainda tem mais qualquer coisa importante a acrescentar.
Porém, apesar de por vezes considerarmos o exercício de pontuar frases deveras retardante, não nos podemos dar ao luxo de subvalorizar a sua importância. A vírgula, usada para separar os membros constituintes de uma frase, tem mais valor do que possa revelar à primeira vista. Ora vejamos.
Pode mudar o orador de uma frase:
Você viu o padre Pedro?
Você viu o padre, Pedro?
Pode mudar uma ordem:
Não espere.
Não, espere.
Pode mudar o culpado:
Esse juiz é corrupto.
Esse, juiz, é corrupto.
Pode mudar uma opinião:
Não queremos saber.
Não, queremos saber.
Pode salvar:
Não tenha clemência!
Não, tenha clemência!
Pode fazer o dinheiro desaparecer:
456 €
4,56 €
Pode transformar um sorriso inocente num sorriso maroto:
:)
;)
Uma vírgula muda tudo. É preciso dar-lhe importância. Não a esquecer. E não lhe passar a vista por cima sem a respeitar.
A capacidade de expressão de uma vírgula é amplamente notada nas obras de José Saramago. Sempre gostei do seu trabalho. Ele brinca com os sinais de pontuação. Reinventa o seu uso. Alguém que consegue fazer o que ele faz, atribuindo sentido ao texto recorrendo ao seu conteúdo ao invés da forma, é sem dúvida um génio.
Deixo aqui um excerto do "Memorial do Convento" que retrata claramente a sua capacidade de criar sentido num texto, usando e abusando da vírgula para "falar" manobrando as habituais regras da prosa portuguesa.
"Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu prometer levantar um convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu, Verdade é, senhor, porém só se o convento for franciscano, e tornou el-rei, Como sabeis, e frei António disse, Sei, não sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, a fé não tem mais que responder, construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão, não construía e Deus decidirá. Com um gesto mandou el-rei ao arrábido que se retirasse, e depois perguntou a D. Nuno da Cunha, É virtuoso este frade, e o bispo respondeu, Não há outro que mais o seja na sua ordem. Então D. João, o quinto do seu nome, assim assegurado sobre o mérito do empenho, levantou a voz para que claramente ouvisse quem estava e o soubessem amanhã cidade e reino, Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de frades franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos, e todos disseram, Deus ouça vossa majestade, e ninguém ali sabia quem iria ser posto à prova, se o mesmo Deus, se a virtude de frei António, se a potência do rei, ou, finalmente, a fertilidade dificultosa da rainha"
A capacidade de expressão de uma vírgula é amplamente notada nas obras de José Saramago. Sempre gostei do seu trabalho. Ele brinca com os sinais de pontuação. Reinventa o seu uso. Alguém que consegue fazer o que ele faz, atribuindo sentido ao texto recorrendo ao seu conteúdo ao invés da forma, é sem dúvida um génio.
Deixo aqui um excerto do "Memorial do Convento" que retrata claramente a sua capacidade de criar sentido num texto, usando e abusando da vírgula para "falar" manobrando as habituais regras da prosa portuguesa.
"Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu prometer levantar um convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu, Verdade é, senhor, porém só se o convento for franciscano, e tornou el-rei, Como sabeis, e frei António disse, Sei, não sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, a fé não tem mais que responder, construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão, não construía e Deus decidirá. Com um gesto mandou el-rei ao arrábido que se retirasse, e depois perguntou a D. Nuno da Cunha, É virtuoso este frade, e o bispo respondeu, Não há outro que mais o seja na sua ordem. Então D. João, o quinto do seu nome, assim assegurado sobre o mérito do empenho, levantou a voz para que claramente ouvisse quem estava e o soubessem amanhã cidade e reino, Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de frades franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos, e todos disseram, Deus ouça vossa majestade, e ninguém ali sabia quem iria ser posto à prova, se o mesmo Deus, se a virtude de frei António, se a potência do rei, ou, finalmente, a fertilidade dificultosa da rainha"
(SARAMAGO, Memorial do Convento)